Pesquisa da Unifesp revela como quintais urbanos constroem redes de pertencimento que desafiam o individualismo das grandes cidades
Pesquisa da Unifesp revela como quintais urbanos constroem redes de pertencimento que desafiam o individualismo das grandes cidades
Espaços muitas vezes invisíveis no planejamento urbano, os quintais seguem exercendo um papel central na vida de milhares de famílias das periferias brasileiras. Cultivados com cuidado e afeto, eles não apenas garantem o sustento, mas também abrigam histórias, saberes ancestrais, memórias e formas alternativas de viver a cidade.
A antropóloga Andrea Barbosa, docente do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos, investigou esses espaços a partir de uma prática etnográfica fundamentada na “antropologia da cidade”, como propõe Michel Agier: uma abordagem que entende a cidade não como entidade fechada, mas como construção relacional e vivida. O estudo, realizado entre quintais do Bairro dos Pimentas, em Guarulhos, e da zona leste de São Paulo, revelou como os cultivos em áreas domésticas se articulam a redes de trocas, pertencimentos e resistências silenciosas frente à lógica produtivista e individualista das grandes cidades.
Segundo Barbosa, os quintais são ambientes de “movimentos de contração e expansão”, que produzem vínculos internos e relações externas com a vizinhança. Para além de áreas produtivas, são paisagens afetivas em constante transformação. "Os quintais revelam uma outra forma de viver a cidade. Em vez do isolamento e da pressa que marcam os grandes centros urbanos, encontramos ali práticas de cuidado, partilha e convivência cotidiana", afirma.
A pesquisa envolveu visitas e acompanhamentos em mais de 20 quintais e jardins, com atenção às interações entre humanos, plantas, animais e outros agentes. A observação dos ciclos de cultivo, doações de mudas, trocas de saberes e usos medicinais das plantas revelou que a prática do plantio permanece viva mesmo em meio à verticalização dos bairros e à diminuição dos lotes urbanos. “Veio de longe, mas tá aqui firme e forte”, disse um interlocutor ao se referir ao milho trazido da Bahia e plantado em São Paulo – metáfora potente para a trajetória de tantos migrantes.
Barbosa destaca que essas práticas nunca cessaram, mas foram invisibilizadas por uma cidade-modelo que valorizou o “ordenado e ornamental” em detrimento da diversidade biológica e cultural presente nos quintais periféricos. Ao contrário da lógica dominante, que afasta o cultivo do espaço urbano, os quintais resistem como uma resposta à precariedade, mas também como escolha consciente de estilo de vida, herança e memória. “Se não tiver um pé de capim limão, não é a minha casa”, resume uma moradora, relacionando planta e pertencimento de forma indissociável.
Há, nos quintais, uma estética própria – viva, heterogênea, emaranhada – que se opõe à cidade-vitrine planejada. As plantas, os vasos, os animais e os elementos orgânicos não seguem padrões formais; seguem afetos, sentidos e saberes que atravessam gerações. Ali, o cheiro de uma erva pode evocar a infância; o gesto de doar um galho, construir alianças entre vizinhos.
Esse “quintal-ambiente”, como propõe a autora, é também um campo de conflitos e negociações – entre vizinhos, com o poder público, com o solo, com os insetos. São práticas que exigem escuta, observação e cuidado, e que ajudam a reconstituir o território como lugar de vida e identidade. A circulação de plantas, sementes, receitas e técnicas forma uma rede de socialidade complexa, muitas vezes invisível, mas essencial.
Andrea Barbosa propõe que os quintais não sejam vistos apenas como resquícios de uma vida rural ou espaços de subsistência, mas como lugares de invenção e reinvenção urbana. “O quintal produz vida social, produz uma forma de habitar a cidade”, conclui. E é justamente nessa produção de relações — humanas e não humanas – que os quintais se afirmam como potentes articuladores de outra cidade possível: mais solidária, diversa e enraizada nas experiências sensíveis dos que a constroem dia após dia.